Tentando respirar em Auschwitz
Refém de um magnetismo indomável, há anos que a minha vontade tinha traçado Auschwitz como destino. E foi apenas com ela, um iPod e um depósito cheio que saí de Praga a meio da tarde e me dirigi ainda mais para Leste.
Para trás ficara um mapa que só nos faz falta quando nos encontramos perdidos, já noite cerrada, algures na fronteira entre a República Checa e a Polónia. Chutado para fora da auto-estrada sem aviso prévio, e depois de itinerários principais, os caminhos de cabras semi-asfaltados são a única via para nenhures. E não há vivalma que a estas horas nos indique que a floresta negra que se vai erguendo diante dos nossos olhos tem término conhecido. A vegetação vai-se adensando, as casas desaparecendo, as luzes evaporam-se e só a Lua permanece pendurada no tecto. Os ursos e lobos, esses, nem se mostram, assustados que ficam com a presença estranha no seu reino. Durante quilómetros a estrada vai-se afunilando e a gasolina também. Só o silêncio parece crescer. Mas o ponto de retorno já fora passado há muito e apenas para a frente restava a solução. Nestes momentos, a arma contra o desespero humano reside numa gota de racionalismo puro, a que uns chamariam estupidez, que nos empurra para diante e não nos deixa acobardar. Sumido no fim do mundo prossigo a marcha até um gigantesco marco de granito, de aspecto soviético, que brotando do chão me dá a ler "Wodzisław Śląski". De tão aliviado por ter visto obra humana, nem sequer me preocupa a tradução e tão pouco me lembro que talvez me queira alertar que o mundo acaba ali. Mas não, o mundo acabaria uns quilómetros mais à frente.
Já de costas para a floresta e de volta às estradas de pez negro sigo as placas que em Polaco dizem Oświęcim. O nevoeiro vai sendo lentamente atropelado pelo meu carro e não me deixa seguir mais depressa. Uma hora depois, as luzes amarelas distorcidas pelo frio e pela bruma são o único sinal de que Auschwitz está já ali. Sigo estrada fora um pouco mais e chego ao cenário que Hollywood teimou em eufemizar: a entrada de Birkenau, the Death Gate. O impiedoso iPod salta para a banda sonora do "Empire of the Sun" submetendo-me a um cruel teste à resistência humana. A curiosidade faz com que não ceda aos seus intentos e feito bravo arregalo os olhos para ver melhor e mais longe. Os tijolos, os ferros, o portão, os carris lá ao fundo, o frio, o silêncio de hoje, gritos de ontem, existem e são palpáveis. Sem sequer me aperceber engulo a primeira miligrama de ansiedade que iria pernoitar comigo às portas do mundo inferior. Rodo a chave do carro e viro-me para o outro lado até o dia nascer.
A manhã rasga ansiosa e eu espreguiço-me o mais que posso quase adivinhando que dentro do campo iria minguar a cada passo. Deixo-me acumular a um pequeno grupo e dou com eles os primeiros passos pela passadeira de gravilha de Auschwitz. E ali está ele, o portão que nos promete a todos libertar pelo trabalho. Rompo-o sem medos, para nos primeiros metros ser separado do meu grupo. Não por Mengele, o Anjo da Morte, mas por um silêncio que não percebo onde é fabricado. A partir daí cada um de nós, por muito junto que estivéssemos, visitaria o campo sozinho.
Logo no primeiro bloco onde entramos a ansiedade deixa de ser engolida e passa a entrar sem convite. E cairá assim, a conta-gotas, de sala em sala, de bloco em bloco, por onde vou vendo as montras mais tristes. Amontoados de óculos de arame, milhares de sapatos sem dono, sem número. Uns abandonados pelos pés ainda em pequenos, outros retirados dos corpos sem vida. Pilhas de malas riscadas com giz. Às centenas, com datas. Com nomes. À minha frente, embasbacado na vitrina embaciada pela respiração, estanca um turista em busca de alguém. Em busca de um nome.
E é nestas alturas que a alma apertada cospe a ansiedade e os olhos humedecem. Simples idiotas que tão pouco resistem a uma visita. E eu que não busco ninguém, já nem a mim me encontro.
Mas a visita continua por tantas outras vitrinas cheias. De panelas e utensílios de cozinha utilizados pelo prisioneiros e que eram na maioria das vezes a sua única riqueza e moeda de troca. Por entre pentes. Milhares de pentes amontoados. Por entre centenas de próteses que outrora se articularam com a vida dos que aqui ficaram. E latas, de Zyklon B, o macabro gás letal, empilhadas numa espécie de memorial aos que por ele pereceram. Noutra divisão as pessoas demoram-se mais: uma tonelada de cabelo numa mancha negra imensa enche uma das maiores vitrinas ali patentes. Milhares de pessoas ali naqueles biliões de fios de cabelo. Os mesmos que tinham resistido até ao último momento, até ao último segundo da "solução final" onde eram previamente rapados antes dos seus respectivos corpos irem a banhos.
Ao lado dessa montra, uma outra mais pequena com uma manta e um tear de aspecto cansado que servira para tecer, daqueles e de milhares de milhões de outros cabelos, mantas pobres e fibrosas que eram depois distribuídas em Birkenau pelos prisioneiros que de frio tiritavam e jamais poderiam imaginar, que numa espécie de canibalismo imposto, se estavam a enrolar nos amigos ou familiares.
O ser humano não consegue ser assim tão macabro ou pelo menos assim pensava eu.
Do lado diametralmente oposto, já noutra divisão, fitam-me milhares de crianças a serem descarregadas dos vagões numa imensa fotografia a preto e branco que acaba apenas porque a parede assim o impõe. A olharem com desespero para a sua passividade infantil vejo as respectivas mães tentando, num berro que agora não se ouve, libertá-las da fábrica da morte.
A este espaço chamaríamos, normalmente, "quarto dos brinquedos", não fosse a restante envolvente. É aqui que estão as crianças pequenas, os bebés, as bonecas, as rocas e outros objectos familiares a qualquer credo que aqui entre. Mas, nunca, numa sala onde se respira a tenra idade, me tinha dado para chorar. Uma das bonecas de cerâmica de olhos azuis e faces rosadas exposta na mesa de vitrina tem a cabeça desfeita em 4 pedaços. Olha para nós, mas tudo o que consigo ver são os olhos da criança que para lá a terá levado. Ao seu lado, uns sapatinhos que normalmente agarramos com a delicadeza de dois dedos e que por aquelas paragens terão sido severamente maltratados. Aqui quase tudo é em formato pequeno. Até a nossa própria alma. Em salas destas, cheias de crianças, vêem-se sorrisos. Ali nem um. O meu que me costuma acompanhar por todo o lado ficara lá fora ao portão.
Já recebido por uma fiada imensa de fotografias percorro, lentamente, outro longo corredor. São inúmeros prisioneiros, incontáveis perfis, que de grosseira fazenda às riscas exibem a sua data de chegada a Auschwitz e a data de morte. Ao contrário do que vemos nos filmes, aqui não houve lugar para heróis, nem Homens de Aço. Média de esperança de vida: 2 meses. Sinal que o uniforme que vestiam era à prova de insultos, humilhações, xenofobia, racismo, torturas e outros devaneios, mas não à prova de bala, à prova de fome ou de doenças. Por aqui sucumbiram milhares arrastando pesarosa e ruidosamente os ossos. Já eu, passo pelo corredor sem sequer me ouvir.
Ao ar livre seguimos viagem. Cada um a seu ritmo entramos num pátio de terra batida cercado por sólidos muros de tijolo. Ao fundo do pátio, do outro lado, “the Death Wall”, a parede que amparara tantas mortes quantas balas tinham sido ali desperdiçadas. Aquele painel de madeira e estopa criado propositadamente para receber o sangue e a pólvora, vira muitos entregarem-se ao alívio perante incansáveis esquadrões de fuzilamento. Mas aqui ao ar livre, pelo menos, respira-se. E não contente com isso a minha guia leva-me para dentro do bloco 11, onde desço até ao Inferno de Dante por degraus estreitos e gastos, agarrando-me a um corrimão carcomido e já sem tinta. Calco as minhas impressões digitais sobre as daqueles que desceram àquelas caves com destinos tão diferentes do meu e vou perdendo de vista a luz. As catacumbas do bloco são em formato de labirinto e o tecto fica a uns 20 centímetros da minha respiração. Mas a claustrofobia não mata já aqui. Passo primeiro por celas minúsculas onde ficavam dezenas de vertebrados com vida à espera que lhes ditassem o destino. Uma das celas, a única aberta ao público, sem se mexer ou dizer uma palavra, muda-me por completo: dentro daquele bunker, onde o sol não chega, a terra nos aperta e o Inferno teve residência durante tantos anos, um gigantesco círio queima o mesmo oxigénio de 1945. Deixado por João Paulo II quase me obrigo a ajoelhar e solto a pergunta que já trazia presa de há tantos metros e horas atrás. Onde esteve Deus durante todo aquele tempo? Remoo as entranhas de católico praticante e tiro-a a ferros. E não recebendo resposta, deixo cair uma lágrima, seco o nariz e sigo viagem com um espaço por ocupar.
Mais à frente, na negritude, uma sala minúscula nunca antes imaginada, reserva-me quatro pequenas portas de madeira rente ao chão que dão acesso a verdadeiros caixões verticais para onde os prisioneiros, já desfeitos por trabalhados forçados, teriam de rastejar para, de pé, passar a noite. Espreito lá para dentro e a repudia claustrofóbica expulsa-me de todo aquele bloco para fora. Pouco mais há para ver dentro do bloco 11. E mesmo que houvesse, eu já não estou em condições de olhar.
De volta ao oxigénio desta década sigo gravilha fora, passando por torres de controlo, cercas electrificadas de arame farpado, até à famigerada fábrica da morte. As outras câmaras de gás, maiores, mas destruídas pelos aliados, estão em Birkenau. Esta, a original mantém-se viva, mas felizmente a sua chaminé já não respira, nem expele “as almas todas para o céu”. Lá dentro um autêntico curro de paredes ásperas e roídas, cinzentas e conspurcadas, deixa entrar pelo tecto pequenos raios de luz vindos de envergonhadas aberturas que outrora admitiram o gás letal. Piso onde tantos outros gritaram e arranharam, desesperadamente, o estuque até chorarem os seus últimos minutos de vida.
Na sala contígua, a da incineração, carrinhos de mão até à altura da minha cintura, que sobre calhas alimentavam com cadáveres a boca das incineradoras e que hoje, milhares de corpos passados, se mostram cansados e, felizmente, reformados do processo fabril, invertem o magnetismo que me trouxe ali e repelem-me livre de inocências de criança. É hora de virar costas a Auschwitz e ir até Birkenau. Entro no carro, puxo o banco atrás como se tivesse crescido, rodo a chave e arranco.
texto publicado no passado sábado na revista "Nós", do jornal i.